numa vasilha sozinha
restava uma pouca janta
cada vez mais funda
desajudada de predicados
não dava para todos
se não aos bocadinhos
e os adultos recuados
deixavam tudo aos miúdos
nunca foi de transbordar
aquela panelinha ferida
valente em oferecer tudo
do pouco que tinha
e era água e uma plantinha
que disfarçavam bem o gosto
de toda a ausência na mesa
de todo o amargo da vida
e a mãe e o pai
resvalados nas madeiras dos cantos
deitavam lágrimas ligeiras
que molhavam as crianças entornadas no chão
todo o lixo ajuntado
debaixo do castigo do sol
virava não mais que uns trocados
trocados por uma lasca de pão
os sapatos remendados
engoliam os pés moídos
capazes de mil ou mais passos
para darem de comer às crianças meninas
eram duas
espantadas com a vida inteira
sem aulas e com casa de madeira
que virava peneira nas noites chovidas
as bonecas do natal
e as sandálias de princesa
vinham todas do lixo
que tinha lá suas surpresas
pensavam as duas
que as pessoas erravam feio
ao acharem que as famílias
só existiam entre as paredes
naquelas madeiras furadas
havia também uma família
que o sol era incapaz de derreter
e a chuva não dissolveria