abajur

ela sobrepõe meu pálido abajur – escurecendo as palavras que eu lia. a silhueta faz zombar das coisas de saber, e o feixe de luz que me resta é imprestável. é que ela perfuma os instantes. ela é o cheiro do tempo. eu, recostado à cadeira enegrecida, faço de conta que não é nada demais. os cotovelos esbarrados de lado e as costas das mãos entre o rosto e o queixo, fazem de mim um espectador acessório. e ela fica brava de um modo tão delicado, que se encolhe amuada à esquerda do leito, onde enlaça esperançosamente o travesseiro. é uma dessas coisas que os deuses esqueceram-se de significar. uma dessas coisas que se espia em silêncio, para que o som não perturbe o breve do sono. a janela destampada permite a passagem do vento gentil, que esparrama o perfume daquela moça por entre meus livros empoeirados. e as importâncias das palavras vão pouco a pouco cedendo lugar para as vontades todas. os óculos de grau atirados ao canto dos papéis, onde repousam as coisas ditas por alguém. completo a direita do leito que, com demasiada paciência, esperara junto à moça por mim. percebo os cabelos despejados e os lábios entreabertos, como se estivessem prestes a dizer uma dessas coisas que me desmontam. e há o vento que assobia inalterável. e a imprecisão da luz que descansa sobre os papéis abandonados. eu às vezes prefiro as coisas quietas. prefiro tudo ajeitado e fico arredado num canto sem nada. às vezes eu prefiro a vida descomportada com aquela moça que é um desajeito só. e prefiro aquela cara emburrada também. é que às vezes eu começo tudo outra vez. e é sempre por ela.