pulou de um quadro
pregado na parede
havia bom tempo
sem ninguém olhar
vestido amarrotado
pés descalços e uma flor
deitada sobre a orelha
bem coberta pelos cabelos muitos
trazia olhos castanhos
unhas por fazer e um laço
que abraçava a cintura toda
e ostentava um lilás qualquer
vivia nas paredes
bonita que só vendo
parecia de verdade
mas não era
cansada das poses iguais
e das poeiras da solidão
cansada da indiferença do tempo
e dos olhares laterais
perdera um bocado do brilho
e os olhos arredondados
ameaçavam sumir de vez
por pouco não se calaram
era de arte barroca
ou de outra coisa louca
que não entendo bem
mas era uma moça-retrato que eu sei
morava nos quartos
às vezes nos corredores estreitos
mas morava sozinha de fato
em qualquer lugar
as moças de arte não dão as mãos
nem cometem pecados sabia
ficam ali estáticas e sozinhas
numa exposição silenciosa
por isso saltou
primeiro da moldura
depois da janela pequena
caindo tempos depois em si
seu coração de tinta mudara
era pulsante e sentia as coisas
e as mãos dadas agora possíveis
sabiam carinhos e adeus
era uma moça pequena
capaz de caber num quadro
que foi arte uma época
mas agora é real
deve ser assim que nascem os anjos
escapulidos todos de uma arte qualquer
fugidos das paredes das casas sozinhas
retratados num corpo de mulher
quando soube disso logo pensei
que a arte-mulher permanece apesar dos quadros
com o coração de tinta sempre magoado
embora disposto a pintar um novo amor