diálogo III

mãe mãe
estou faminta
e embora à água à barriga eu minta
ela não está a me escutar

filha perdoa-me
sejas disso capaz
pois o perdão deve vir até das gentes como nós
mas nem uma noz tenho a lhe dar

mãe mãe
podes ouvir
os barulhos que faz
essa geringonça quando há tudo a faltar

pequena bem sei
que dos pobres
as barrigas são falantes
tagarelas e sem educação

mas por que o silêncio
ou por que a educação
se às escolas nunca vão
as barrigas dos pobres

porque sobre a falta das coisas
das coisas mais essenciais
a vida pela rua nos ensina mais
do que todas as teorias

e o que devo aprender
que ainda não sei
para a fome explicar
que tanto de nós não se deve cobrar

saiba menina
a miséria não é sabida
é cega burra mas comprida
e a tudo assimila pelo hábito

então devo me acostumar
com a falta
com o hálito vazio dos gostos
e com o meu rosto em ossos a apontar

temo que sim
e se perguntas a mim
como mãe
tenho que dizer

então nem um pão
a miséria
nenhum coração
é capaz de aguentar

não é bem assim
vejas a mim
magra mas viva seca mas viva
a miséria a vida não me levou

e o teu coração
oh mãe
do que se alimenta
e o que a ele não pode faltar

o coração menina
se trata com estimas
e muito disso há na vida
até dos que nada têm a dar

até dos ricos
dos homens em paletós
apressados e convencidos
de que com gravatas em nós a vida venceram

os homens em seus banquetes
têm menos do que nós
e a pobreza atroz
para eles é outra

mas como é outra
se a pobreza feroz
a eles ou a nós
deve de ser uma só

somos pobres da barriga
eles do coração
estamos famintas eles não
temos estimas eles não

mãe mãe
temos cheios os corações
mas nada nas barrigas
mereço isso tão menina

não penses assim
a vida não é feita de merecer
para mim para eles para você
a vida não é mais do que um apertar de águas