me amasse

eu queria que você me amasse depois que eu esquecesse as chaves do carro no carro trancado

eu queria que você me amasse depois que eu desbotasse o seu vestido favorito com água sanitária ou cloro ou uma dessas coisas que tira a graça da cor das roupas

eu queria que você me amasse depois de chutar com o dedinho mindinho a quina da mesa e a unha à francesa se desfizesse bem à hora da festa

eu queria que você me amasse em plena segunda cedo chovendo atrasada descabelada com cólica naqueles dias fim do mês em que não há nada por acontecer

eu queria que você me amasse depois que eu trocasse o seu nome por outro e dissesse que absorto esqueci de como lhe chamar

eu queria que você me amasse depois do trabalho no ônibus lotado trânsito parado calor infernal

eu queria que você me amasse depois que eu chegasse em casa com janta enlatada poeira nos móveis chuveiro queimado bem à hora do banho num frio descomunal

eu queria que você me amasse todos os dias e até nos dias em que eu só faço poesia e que fica impossível de me amar

mas acontece que o amor não resiste a tudo mulher e não é como o tempo que nunca se estanca

ele tem suas pausas suas vírgulas seu ponto final

o amor é uma gramática toda burocrática nada didática em que só o que está à prova é o ato de amar

eu queria que você me amasse até quando amar não fizer mais parte de algum tempo verbal

para que você me amasse pretérito presente para sempre