conto e não conto

até pensávamos em coisas iguais
coisas mesmas
mas éramos opostos
feito concreto e mato
feito terra e asfalto
éramos o outro ao outro

imensuráveis
não tínhamos tamanho
e por isso não sabíamos o quanto ocupávamos um do outro
não sabíamos o espaço que tomávamos dentro do outro
éramos feito a falta ou o medo nos corpos das crianças
feito a água em mangue ou o vermelho em sangue

pensamos em determinar medidas
com a régua ou as rédeas da matemática
para dimensionarmos o que éramos
porque números são mais do que palavras
ou sentimentos ou coisas inexatas
queríamos saber se poderíamos caber fora do outro

certa vez como à eureca chegamos ao cálculo final
soubemos com logaritmos e triângulos quem éramos
como éramos e para que éramos
soubemos que servíamos ao outro como uma espécie de todo
se tirássemos do outro o que éramos nós
nada ficava no outro

éramos opostos diferentes contrários
éramos o que o outro não era
tínhamos o que o outro não tinha
sabíamos o que o outro não sabia
mas sentíamos o que o outro sentia
éramos portanto a igualdade no que sentíamos

abismados com a estrondosa descoberta
voltamos para casa muito apressados
antes que a mãe partisse-nos a cara
ao perguntar-nos o que fazíamos sumidos pela tarde toda
dissemos que estávamos a descobrir coisas
mas não a caçar insetos confusão ou a brincar com asneiras

dissemos que descobrimos um erro de cálculo
um equívoco de deus ao criar as coisas diferentes
entre semelhanças e dessemelhanças um erro crasso
nascemos fora do outro
éramos o outro ao outro
mas iguais no que nos era essencial
a mãe já com o cinto corretivo na mão
dizia que não entendia patavinas daquilo
que éramos esquisitos ou moles demais para as coisas fáceis da vida
mas que tendíamos ao difícil
ao impossível das coisas
como se fôssemos feitos para as impossibilidades

então como que por clemência
a evitar que o cinto ardesse-nos às pernas
perguntamos à mãe com reverência
por que éramos iguais na espinha e nos ossos
no sangue e no funcionamento interno do coração
perguntamos se éramos máquinas crianças que seriam máquinas adultas amanhã

e a minha mãe nos disse assim
que não importava o porquê das coisas
nem como nem quando nem onde
que não era da conta humana saber das coisas que advinham do céu
que éramos apenas crianças muito curiosas e intrometidas
que não sabíamos nada e coisa alguma

assim calados e as pernas ardidas da punição
deixamos o cálculo ao lado assim como fazíamos aos brinquedos fraturados
e prometemos um ao outro que não tocaríamos mais no assunto
que era óbvio muito óbvio e muito claro
que nada mais torna tão diferentes os homens entre si do que a sua igualdade
e nos feriríamos sempre que recorrêssemos a qualquer explicação justificativa ou esclarecimento sobre o porquê das coisas

e as pessoas que diziam que se deve buscar a ignorância como modo de sobrevivência
é que estavam corretíssimas
porque diziam isso por já terem partido as pernas a cara e o peito inúmeras vezes
decidimos então que não perguntaríamos mais por que éramos assim
tão heterogêneos fora e tão homogêneos dentro
e o nosso cálculo final dizia

iguais
são todos
à luz ausente

a bastar uma só vela
para que saibamos todos
quem éramos nós à escuridão