a canção esquecida

gostaria hoje de lavar os dentes
e sair ao fora da casa
ao dentro do mundo
ao cimo da rua
ao baixo de tudo
de tudo o que o mundo é

mas falta-me a coragem
e um batom adequado
um sapato pontiagudo
e um vestido liso
porque não está pela época das flores
e as árvores das ruas estão arruinadas

repara como o céu está baixo não está
risco aos homens altos de baterem as cabeças
e pular testa fora uma ideia
e pular corpo fora uma alma
e pular peito fora um coração
se é que há

gostaria hoje de lixar as unhas
depois que o amargo do café
metido fundo garganta abaixo
acordasse-me de vez ao mundo
e afundasse o navio da solidão
porque o amor é só um barco

as mulheres esquecidas aparecem pela minha porta
porque já não querem ver ninguém
porque não está pela época das flores
e as árvores das ruas estão ensopadas pelo incêndio
as mulheres esquecidas aparecem pela minha porta e se vão
porque não há espaço para dois sozinhos

gosto muito da minha solidão sem ninguém
não atendo aos telefones
não atendo aos homens
não apago os incêndios
as árvores que se virem com seu fogo
os afogados que se virem com seu mar

gostaria hoje de me posicionar sobre um assunto difícil
mas já não leio livros não estudo muito não leio aos olhos
gostaria hoje de lavar os dentes e sair ao fora deste corpo duro
embora já tenha desaprendido a atravessar ruas e a chance de um desastre fique imensa
mas não vale a pena estragar o vestido liso nem o sapato pontiagudo
que é tudo o que tenho

já ouviu a canção que diz que tudo
mas mesmo tudo é nada sem alguém
e que a solidão é morrer na estrada a pedir carona
a acenar com os dedos com os braços com o corpo com a alma
para alguém que não virá
e que o amor é um caminhão na contramão mas em outra estrada que não a tua

é a mesma canção que diz que nada
mas mesmo nada é tudo sem alguém
e que o fora da casa o dentro do mundo o cimo da rua o baixo de tudo
mas mesmo tudo é nada sem alguém
lembra-te desta canção
eu também não